Há 52 anos, em 28 de outubro de 1973, os estudantes José Carlos da Mata Machado e Gildo Macedo Lacerda eram assassinados por agentes da ditadura militar no Recife, fato que se tentara dissimular pelo vergonhoso episódio que entrara para a história como o “Teatro da Caxangá”.
Mata Machado e Gildo eram lideranças estudantis em Minas Gerais quando da eclosão do golpe militar de 1964, tendo ambos chegado a ocupar cargos importantes no movimento estudantil, dentre eles, a vice-presidência da UNE.
A partir da decretação do AI-5, em 1968, a repressão ao movimento estudantil agravou-se consideravelmente, resultando em violentas invasões às universidades, prisões em massa, torturas e assassinatos. Mata Machado e Gildo tiveram que ir para a clandestinidade.
Vivendo as agruras de uma vida marcada por fugas e perseguições, engajaram-se na Ação Popular e, depois, na Ação Popular Marxista-Leninista, organizações de resistência à ditadura.
Não era fácil resistir naqueles tempos, porque, além de tudo, havia um elemento sutil que a qualquer momento poderia aparecer: a traição.
Traído por seu cunhado Gilberto Prata, um ex-militante da APML que se tornou colaborador do regime, Mata Machado foi capturado em São Paulo no dia 19 de outubro de 1973. Gildo foi pego nas mesmas circunstâncias em Salvador três dias depois.
Ambos foram transferidos para o DOI-CODI no Recife, onde sofreram as piores sevícias de suas vidas. Espancamentos, choques elétricos, dedos quebrados e couro cabeludo arrancado.
Fernanda Gomes e Melânia Albuquerque, duas estudantes presas no mesmo recinto, testemunharam todas as agressões.
Agonizando, com os ouvidos e a boca sangrando, Mata Machado ainda conseguiu pedir um favor a Rubens Lemos, prisioneiro da cela vizinha: “Companheiro, meu nome é Mata Machado. Sou dirigente nacional da Ação Popular. Estou morrendo. Se puder, avise aos companheiros que eu não abri nada”.
Mata Machado faleceu sob tortura no dia 28 de outubro de 1973, aos 27 anos. Seu companheiro de organização, Gildo Macedo, também foi assassinado neste mesmo dia.
Para justificar a morte dos militantes, a ditadura divulgou uma versão baseada em uma vergonhosa farsa, que ficara conhecida como o “Teatro da Caxangá”, em alusão à via da capital pernambucana.
Segundo o governo, José e Gildo teriam sido assassinados por um militante da própria APML de codinome “Antônio”, que estaria desconfiado de que os colegas estariam colaborando com o regime.
De acordo com a nota oficial, os dois militantes da APML teriam confessado um encontro com esse terceiro na Avenida Caxangá esquina com a Rua General Polidoro.
Para explicar à opinião pública, os agentes providenciaram para o dia 28, às 19h:30min, um tiroteio no referido ponto.
A nota informou que, ao chegar no local combinado, Antônio “pressentiu alguma irregularidade e abriu fogo contra seus presumíveis companheiros, acusando-os, aos gritos, de traidores, ocasião em que se iniciou o tiroteio”.
A referida nota, publicada no dia 31 de outubro, detalhou o “tiroteio”, e, no dia seguinte, os principais jornais do país estampavam a manchete: “Subversivos da Ação Popular morrem em tiroteio no Recife”.
Reparem no detalhe: além de atribuir a autoria dos assassinatos à própria esquerda, a justificativa serviria para rotular José e Gildo como traidores, gerando tensão e desconfiança entre os membros da organização.
Ao mesmo tempo, a farsa daria aos militares um pretexto para justificar o desaparecimento de Paulo Stuart, o tal “Antônio”, outro militante da Ação Popular que havia sido capturado, torturado e morto pelo regime.
É assim que atuam as ditaduras.
A prática do chamado “Teatro dos Mortos” é algo relativamente comum em regimes autoritários.
Em depoimento à revista Veja, em 1992, o ex-sargento do DOI-CODI, Marival Chaves, explicou como funcionava: “O preso morto era levado para um local público, onde equipes do DOI simulavam um tiroteio com mortes. Na hora de levar o “corpo” para o IML, faziam-se as substituições. O agente que se fingira de morto era substituído pelo corpo do preso”.
O “Teatro da Caxangá” aconteceu apenas dez dias após a prisão de José e sete dias após a prisão de Gildo.
José e Gildo foram enterrados como indigentes no Cemitério da Várzea.
A quem interessar, recomendo o livro “Zé – José Carlos Novais da Mata Machado”, de Samarone Lima, e o filme “Zé”, de Rafael Conde, lançado em 2023, no aniversário dos 50 anos da morte de José Carlos.
Justiça não se faz com esquecimento.
Ditadura nunca mais.
José da Costa Soares, Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Pernambuco. Sócio efetivo do IAHGP. Administrador da página @historia_em_retalhos.




